Manifesto Amador por José Luís Peixoto

Antes de tudo, é preciso fazer. Olhar para as mãos e suspirar, queixar-se da vil intempérie, pedir clemência aos deuses, é indigno de quem pode ser tantas coisas. Deitar-se na cama morna da loucura, só telemóvel noite e dia, fazer tudo, mesmo tudo, por um like,é indigno de quem pode ser tantas coisas. Comer papas de uma tigela, beber uma mistela amarela, dizer “isso também eu fazia”, é indigno, é um escândalo, é um desperdício de quem pode ser tantas coisas. Antes de tudo, antes do próprio antes, é preciso fazer.

O gesto atravessa o ar, os braços são gruas diante dos barcos do cais. Antes disso, a vontade foi como a sede, boca seca de sonho. O gesto dirige-se ao futuro, és tu que o diriges porque o gesto és tu. Incrível, o gesto és tu. Antes disso, a vontade rebentou como uma granada ou como uma semente.A vontade também faz parte do gesto, dizes.Tens razão, tens tanta razão. E, mesmo durante estas palavras, o gesto avança, vem do fundo da vontade.

Para ter vontade, é preciso querer.

Querer é decidir.Não somos projetos, estamos aqui, ocupamos lugar no espaço.Temos medo, mas não permitimos que nos paralise.Amamos a eletricidade de tocar o mundo. Fazer, antes de tudo, é preciso.

Seremos capazes?, antes de pronunciarmos estas sílabas, já demos o primeiro passo. Se deixarmos o ponto de interrogação à solta, há de reverberar, há de transformar-se num eco de si próprio, paranoia. Seremos capazes. Derrubámos o ponto de interrogação como quem derruba a estátua de um ditador. Somos capazes. Afirmar que somos capazes já é sermos capazes.

Sem salário, sem um obrigadinho, comparecemos todos os dias. Seria mais fácil não estar aqui, mas de que serviria viver assim? Desviver assim? Caminhar sobre brasas não custa, ficar anos sem ver a família não custa, vomitar a própria bílis não custa. Mais custoso é ficar em casa, esconder-se atrás de tentações que, a pouco e pouco, perdem o sabor. Mais custoso é ser cobarde e olhar-se ao espelho. Amamos a eletricidade de tocar o mundo, mesmo quando nos mata.Se morrermos de estar aqui, vivemos mais do que quase todos.