POR SUSANA JACOBETTY
Ilustração Gabriel Fialho

Ana Paula Amendoeira licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, é mestre em Recuperação do Património Arquitetónico e Paisagístico pela Universidade de Évora, diplomada em Administração de Projetos Culturais pela Fundação Marcel Hicter do Conselho da Europa e, fez investigação no âmbito de curso de doutoramento na Universidade de Paris IV Sorbonne sobre a aplicação da convenção do Património Mundial da UNESCO. Com um vasto e reconhecido percurso profissional na área da cultura, galardoada e distinguida com vários prémios ao longo dos anos, Ana Paula Amendoeira tem desenvolvido a sua investigação na área do património cultural com especialização em Património Mundial da UNESCO.
Em 2013 assumiu o cargo de diretora Regional de Cultura do Alentejo e, por inerência do cargo tornou-se membro do Conselho Nacional de Cultura na secção de Património Arquitetónico e Arqueológico e na Secção de Museus. Foi membro da Comissão Executiva da candidatura vencedora da cidade de Évora a Capital Europeia da Cultura em 2027. É uma referência na área cultural e de património do nosso país. A A Magazine quis conhecê-la melhor.

A instalação da Direção Regional da Cultura do Alentejo na Casa de Burgos ficou ligada a uma descoberta histórica?
As ruínas da Casa de Burgos foram encontradas nos anos 90, no decorrer das operações de conservação deste edifício e respectiva adaptação para a instalação dos serviços de cultura. A Casa Nobre da Rua de Burgos alberga diversas estruturas históricas importantes, nomeadamente parte da chamada Cerca Velha, uma grande muralha tardo-romana, que foi construída sobre as ruínas de uma antiga domus romana, datada de finais do século I ou início do século II d.C. No período manuelino, a casa nobre cresceu e, nos séculos seguintes, o edifício volta-se decisivamente para o exterior, assumindo a presença ao longo da Rua de Burgos, hoje visível, com as suas janelas de cantaria do século XVIII.
Está aberta ao público?
Sim, é possível visitar a grandiosidade das estruturas arqueológicas sobretudo da imponente muralha romana e o excelente estado de conservação em que se encontra. Trata-se de uma construção com cerca de dois mil anos, de grande qualidade construtiva, técnica e de materiais.

Qual é a sua visão sobre a cultura em Portugal?
Penso que há visivelmente uma necessidade de termos uma visão integrada e transversal da cultura.
A excessiva municipalização do país que põe quase todos os assuntos da governação na escala municipal é uma sobrecarga para os municípios e não ajuda,
na minha opinião, a criar políticas verdadeiramente integradas para as regiões e para o país. E a cultura
não é exceção. Vivemos num tempo em que se confunde muito a dimensão cultural reduzindo-a não raras vezes ao puro entretenimento.
Quer especificar melhor?
A miséria humana é sempre pior quando é também uma miséria de espírito, intelectual, crítica e portanto cultural. Existem pessoas pobres do ponto de vista económico, com uma dimensão de autoestima e de posicionamento perante a vida e o mundo, que lhes é permitida pela dimensão cultural que têm. O pensamento crítico, que nos é dado por uma desenvolvida dimensão cultural permite que as pessoas se possam apropriar do mundo. A apropriação do mundo é um dos maiores exercícios de liberdade que podemos ter. Não nos sentirmos esmagados pelo mundo, mas sentirmos que somos sujeitos da nossa própria vida. Mas para nos apropriarmos do mundo temos de ter uma série de instrumentos e de competências, que só nos são dadas pela cultura.
Está a falar da educação?
Claro que na cultura, é lato senso também está incluída a educação: por exemplo o plano nacional das artes pode ser generalizado ao país, de forma a saltar da dimensão escolar para a da sociedade. Pode ser um excelente instrumento para evoluirmos enquanto sociedade no que diz respeito à produção de riqueza cultural, no sentido mais abrangente daquilo que é a palavra cultura. Mas seria necessário um verdadeiro investimento estratégico e nacional.

Mas está a cultura acessível à população em geral, em particular à das zonas interiores ou rurais?
Recorro à frase célebre do Saramago quando ganhou o Prémio Nobel que cito de memória:
“O meu avô era analfabeto e era a pessoa mais culta que conheci.”
Esta frase não é uma frase feita, porque eu própria conheci várias pessoas analfabetas, como a minha avó, muito cultas. Tinham uma abordagem ampla do mundo deles, tinham uma força e uma coragem excecionais para encararem o mundo e as dificuldades.
Tinham coragem e dignidade. No Alentejo esse traço de identidade era muito forte. Aliás via-se na resistência antes do 25 de Abril de 1974. Não considero que tenha de se levar a cultura aos territórios. É preciso criar
as condições para que em todo o território se crie e trabalhe em cultura o que é diferente.
Uma pessoa do campo pode ser culta?
Quando dizemos que uma pessoa do campo é culta, ela é verdadeiramente culta. Não é nenhuma apreciação paternalista, nem maternalista, nem de superioridade
A sua posição no mundo e a forma como interage com a natureza é uma luminosa mais-valia, que, muitas vezes, em outros segmentos da chamada cultura cultivada não conseguimos vislumbrar.
Na sua opinião, o que deve ser feito?
Deveríamos prestar atenção a este saber viver e investirmos no sentido desse conhecimento ser atualizado, valorizado, indutor de alteração de práticas que são prejudiciais ao ambiente, à terra e ao planeta. Ainda temos nas nossas sociedades algum conhecimento que nos permitiria contribuir para alterar essa tendência. Por exemplo no que diz respeito à arquitetura tradicional, aos materiais e técnicas construtivas locais e regionais, adaptadas ao clima temos um conhecimento importante para trabalharmos na adaptação às alterações climáticas ao invés de “importarmos” técnicas de construir e de habitar e desenhar cidade completamente desadequadas ao território, à paisagem, ao clima, à história da nossa implantação e ao conhecimento e à nossa competência de edificar e de habitar. Esta é uma cultura importantíssima. Se eu tivesse de escolher uma linha estratégica para atuar na cultura seria a de não olhar para o património apenas como passado, mas fazer um investimento nacional estratégico e sistemático nessa transmissão geracional de conhecimentos, atualizados, aplicando os avanços científicos e tecnológicos que nos permitem por exemplo hoje construir em taipa, adobe, pedra ou madeira ou outros materiais, com muito mais qualidade beleza e adaptabilidade às exigências de conforto e respeito pelo ambiente e pela paisagem. E verdadeira sustentabilidade.

Quais as medidas imediatas que tomaria a nível nacional para que a aproximação à cultura se tornasse num modo de empoderamento do nosso povo e revertesse o estigma sobre todos os que escolhem, mesmo que de uma forma transversal, caminhos dentro deste âmbito?
Não tenho, felizmente, esse poder de decisão e essa responsabilidade… e se o tivesse certamente que não teria uma receita para um assunto de tão grande complexidade. Ainda assim diria que a cultura é condição de liberdade tal como a saúde, a educação, a habitação, a justiça, a paz… para que a vida das pessoas seja mais, muito mais, do que a vidinha de que nos falava Alexandre O’Neill. Há ainda muito caminho a fazer para que a cultura possa ser considerada essencial para a qualidade de vida e, portanto, parte efetiva nos processos e estratégias para as regiões e para o País com investimento integrado e pensado transversalmente. Houve em tempos um Programa Operacional para a Cultura (a nível nacional). Apesar dos bons resultados não teve continuidade.
Qual a sua opinião sobre a extinção das Direções Regionais de Cultura? O que pode significar em termos práticos esta nova política?
Tenho muita pena que tenham decidido extinguir organismos sem que os mesmos tenham sido avaliados, no caso da DRCAlentejo estamos até a falar do único organismo certificado no universo da tutela da cultura e que viu esta semana ser renovada a sua certificação por entidade auditora independente, após auditoria a todos os processos. Todas as avaliações de desempenho que tivemos ao longo do período de funcionamento, desde 2012, foram boas. Claro que as limitações de meios e de condições de funcionamento sempre têm sido muitas, mas esses são fatores externos e não uma consequência do modelo e da orgânica. Os agentes culturais no Alentejo sabem que sempre estivemos próximos a fazer tudo o que podíamos, apesar da falta de meios e é essa a nossa melhor avaliação. Muitos pronunciaram-se mesmo em documento público sobre este assunto. Iremos deixar de ter interlocutores institucionais com autonomia e representatividade da área governativa da cultura na região como sempre aconteceu e isso é um retrocesso na minha opinião. A minha comissão de serviço está a terminar(em dezembro) e cumprirei a minha missão até ao último dia numa total entrega e espírito de serviço à nossa região e às nossas pessoas, como sempre.
Uma pessoa com o seu conhecimento, visão e competência tem de estar ao serviço dos portugueses e num lugar onde possa contribuir definitivamente para um Portugal melhor, salvaguardando a nossa cultura. Quais os seus planos para o futuro?
Agradeço muito a gentileza da pergunta e o elogio que muito me honra, mas não me envaidece porque sei as dificuldades com que todos os que fazem cultura na região lidam diariamente. Sei bem, conheço os problemas e os muros que os impedem muitas vezes de avançar, que impedem o sonho..
Há aqui um sereno sofrimento de um sobreiro a sangrar, como dizia Miguel Torga.
Eu sou quem menos importa porque o Alentejo é maior que todos nós. Eu estarei disponível sempre para trabalhar pela nossa terra alentejana e também pelo país, claro, e é o que espero fazer como historiadora, na área do património mundial, como trabalhadora da cultura e do património e sempre que considerem que posso ser útil. Não pertenço aos quadros de nenhuma instituição, apenas ao Alentejo que é o meu grande contrato na vida. Obrigada mais uma vez por esta pergunta tão honrosa.