POR JOSÉ ALBERTO GOMES MACHADO
Olhar para o passado, recente ou mais distante, é evocar um tempo e revisitar espaços, marcantes por si mesmos e, sobretudo, pelas vivências, que neles ocorreram. Há lugares onde se foi dando um acumular de História. Lugares para os quais converge uma multidão de memórias pessoais, especiais por corresponderem a uma fase marcante da vida de cada protagonista – lugares de histórias.

Reitora Hermínia Vasconcelos Receção aos novos alunos. Colégio do Espírito Santo. 12 de Setembro de 2023
Uma instituição é quase sempre moldada pelos espaços em que se instala e evolui. Pensar na Universidade de Évora é trazer à mente o Colégio do Espírito Santo, a Mitra, ou o Palácio Vimioso, entre outros lugares de estudo, convivência, aulas e produção de saber.
Memória descontínua e memórias sobrepostas. Nem sempre um espaço desempenhou a função para que foi originalmente concebido. É caso exemplar o Colégio do Espírito Santo – universidade nos seus primeiros dois séculos de existência, adaptado depois a outros usos educativos e administrativos, como um liceu (o mais belo do país) e, por fim, de novo universidade.

Centro do Mundo, Colégio do Espirito Santo. Fotografia João Bettencourt Bacelar

Colégio do Espirito Santo. Fotografia João Bettencourt Bacelar
No claustro principal, onde tantas vezes me sentei a haurir a beleza ambiente, em cujas salas magníficas tantas vezes dei aula, que tantas vezes mostrei a visitantes ilustres e anónimos, fez-se outrora teatro. Representaram-se aqui várias peças,
com os estudantes por atores, em atos festivos de receção a altos personagens, como monarcas, nacionais e estrangeiros. Por ele passearam gerações de jesuítas e seus pupilos, no exercício peripatético de pensar e discutir.

Colégio do Espirito Santo. Pormenor do teto da biblioteca Fotografia João Bettencourt Bacelar

Colégio do Espirito Santo. Pormenor do teto da biblioteca Fotografia João Bettencourt Bacelar
Aqui se banharam tantos e tantos finalistas, marcando o final dos seus cursos, primeiro na bela fonte setecentista e agora numa banal piscina de plástico, fundamental para esse momento extraordinário de felicidade, que ocorre uma vez por ano para todos e uma vez na vida para cada um. A emoção de pais e filhos faz vibrar, em cada verão, o claustro onde
foram recebidos D. Sebastião e D. Catarina de Bragança, rainha de Inglaterra.
A reutilização de espaços e edifícios, sendo fundamental para a sobrevivência, é geradora de memórias sobrepostas, que formam um contínuo, que define a existência histórica e presente daqueles. A Sala de Actos, por exemplo foi capela, foi ruína, foi ginásio… E mesmo quando a função se manteve, mudou o modo como se efetiva nas salas de aulas, o mestre lecionava outrora a partir da cátedra e os alunos escreviam sobre o joelho… Durante vários anos, dei aulas de mestrado na mais pequena sala, sem janela, dotada de extraordinários azulejos misturando alegorias barrocas com instrumentos científicos de medição e observação. Foi concebida, no passado, para o ensino de balística e arte das fortificações; o seu original programa decorativo faz dela – como as restantes – um elemento patrimonial muito adequado para enquadrar as nossas contemporâneas reflexões sobre património.
A Capela de Nossa Senhora da Conceição, pequena joia de alto significado histórica, esteve muitos anos fechada e durante algum tempo reduzida a armazém. Ostenta hoje, para deleite de quem a visita, uma estátua da padroeira, que substitui a original, há séculos desaparecida. Nesta imagem, está também plasmada a memória de quem a buscou, encontrou e adquiriu, em esforço conjunto de uns quantos, que quiseram que voltasse a ser ocupado o nicho longamente vazio. As pessoas intervêm no espaço, alterando-o, restaurando-o, requalificando-o. Tornando-o fonte de novas futuras memórias.
O imenso refeitório quinhentista, com os seus azulejos enxaquetados verde e branco e com a tribuna da leitura para os textos edificantes, foi depois palco de tantos exames escritos e de vários almoços e banquetes, alguns dos quais com monarcas contemporâneos, nada ficando a dever aos régios visitantes de outrora… O auditório maior do edifício teve antes larga vida como ginásio… Assim se vão sobrepondo memórias, que correspondem a diferentes vivências dos mesmos espaços, transformados para poderem continuar vivos.

Alvará do Rei D. Sebastião 1579

A Mitra foi outrora a residência de verão dos arcebispos de Évora. Daí o nome. Contudo, a memória hoje mais persistente não está tanto ligada ao precioso conventinho franciscano, nem sequer à extraordinária igreja, que é um dos mais puros exemplos do Renascimento em Portugal. Mitra faz pensar em campo, em animais e plantas, em botas no terreno, nas ciências agrárias, que deram renome à nova Universidade, cujo cinquentenário agora se celebra. Na minha memória privada, está um painel de azulejos no edifício novo, executado por Nuno Mendoça a meu pedido. E o nadar no lago circular barroco, coisa longínqua de jovem assistente audacioso….
O quartel, sobre cujo passado se construíu o Colégio Luis António Verney, é um bom exemplo da possibilidade de memórias sobrepostas, de espaço redirecionado, em que as ciências exactas constroem o futuro.
O Vimioso, velha mansão fundada por uma família da alta aristocracia, significa hoje a investigação que entre os seus muros se planifica e leva a cabo. Mas já significou, em passado não muito distante, salas geladas, onde, nas aulas muito matinais, os alunos escreviam com luvas e o docente andava de um lado para o outro, apertando o sobretudo e fazendo um esforço mirabolante para captar a atenção, em luta contra o frio do semestre de Inverno, sempre agreste.

Herdade da Mitra. Fotografia João Bettencourt Bacelar

Escola das Artes da Universidade de Évora, Fábrica dos Leões. Fotografia Beatriz Nunes
E que dizer da antiga fábrica de massa dos Leões, onde hoje florescem as artes visuais e o teatro, numa notável integração e transformação do espaço? Ou do Colégio Mateus de Aranda, que absorveu as memórias de uma outra instituição também ligada à música?
São as pessoas que diversamente os habitam, que fazem de cada lugar um lugar de memória. Os aplausos amigos na Sala de Actos, no final de uma prova académica concluída com êxito; os cortejos, discursos e lições inaugurais de tantos dias primeiros de novembro; os doutoramentos honoris causa de diversos personagens mais ou menos ilustres; as cerimónias de entrega do Prémio Vergílio Ferreira; as centenas de reuniões, muitas das quais de escassa utilidade, os assuntos que pareciam tão importantes e que o olvido rapidamente levou; as lutas, as politiquices, os pequenos triunfos e humilhações; as amizades construídas, os interesses semeados em mentes férteis, as horas felizes são também o legado destes lugares.

Colégio do Espirito Santo. Pormenor do teto da biblioteca Fotografia João Bettencourt Bacelar
Também nos assalta a lembrança daqueles que partiram. São já muitos ao longo destas décadas. Em grau maior ou menor, pilares desta universidade que ajudaram a erguer…
Ário Lobo de Azevedo, António Santos Júnior, Manuel Ferreira Patrício, Augusto da Silva, Gonçalo Ribeiro Telles, Mariano Feio, Francisco Gonçalves, Ferreira de Miranda, Florêncio Leite, Jorge Moraís Barbosa, Rodrigues Martins, Eduardo Cruz deCarvalho, Vítor Caeiro, Inácio Rebelo de Andrade, Francisco Correia das Neves, José Dias Sena, Jorge Pinho Monteiro, Nuno Potes, António João de Brito, Maria Amélia Cutileiro Índias, Vítor Trindade, António Neto, Francisco Ramos, Minervina Baptista, Teles Grilo, Ermelinda Lourenço, Afonso de Almeida, Clara Menéres, João Corte Real, Filipe Nogueira Alves, Carlos Alberto Silva Carvalho, Filomena Barros, José Maria Pinto Barbosa, Rodrigues Dias, Mariana Cascais
e vários outros, que o recordar conserva vivos…

O OLHAR DA MEMÓRIA NÃO É MERAMENTE RETROATIVO.
Neste momento final da minha carreira, após 40 anos de trabalho e construção da Universidade de Évora, restaurada e nova, volto a imaginar-me sentado no claustro, fruindo a harmonia clássica do espaço, pensando, lembrando, imaginando. E neste olhar presente para um hipotético futuro em que recorde um passado feliz, dou graças a Deus por quanto aqui me permitiu viver.

Professor José Alberto Gomes Machado. Fotografia João Bettencourt Bacelar