O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria

lustração Beatriz Nunes, com base no quadro de António Mouro, século XVI

A infanta D. Maria de Portugal (1538-1577) nasceu no Paço da Ribeira, em Lisboa e faleceu em Parma. Também conhecida por Maria de Guimarães, foi infanta de Portugal e duquesa-consorte de Parma e Placência, pelo seu casamento com Alexandre Farnésio, ele sim, duque de Parma e Placência.

Era filha de D. Duarte, 4o duque de Guimarães e de Isabel de Bragança. Era neta de D. Manuel I. O enlace matrimonial realizou-se em 30 de novembro de 1565, em Bruxelas. Deste casamento nasceram três filhos, um dos quais, Rainúncio, que chegou a ser apresentado como herdeiro do trono português durante a crise dinástica de 1578-1580, por ser bisneto do rei D. Manuel I. Segundo Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut, a infanta D. Maria era uma mulher culta, conhecedora de línguas clássicas, Filosofia e outras “ciências.

O LIVRO “DE COZINHA” DA INFANTA D. MARIA

O manuscrito, que foi designado por Trattato di Cucina Spagnuolo e atualmente conhecido por O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, foi estudado por Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut 2 com publicação portuguesa em Coimbra, em 1967 embora, anteriormente tenha sido estudado por outros investigadores. Na verdade, a intenção da Infanta, ou de quem por ela decidiu, não seria a de organizar um livro de receitas culinárias. Na realidade, trata-se de uma compilação pragmática e disciplinada de vários saberes relacionados com culinária 3, instrumentos de cozinha e de “medicamentação caseira” que ficaram reunidos e revelam informação interessante sobrea organização da cozinha de uma senhora da alta nobreza italiana. Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut consideram que resultaram de compilações de diversos tempos, lugares e mãos, sugerindo que, pela tipologia da letra, seriam três pessoas as que registaram as informações.

Exemplar da primeira edição, autografado. Biblioteca Municipal de Faro.

A Infanta seria dona de uma personalidade de muito rigor e extrema religiosidade. Dedicava-se com disciplina à gestão da vida quotidiana da família. Sabe-se que deixou um legado testamentário ao cuidado do seu confessor, o jesuíta Sebastião de Morais que cedo o tornou público, com transcrição e cinco edições em Itália, um ano após a sua morte. Desse legado faria parte também este conjunto documental manuscrito por várias mãos, seguramente três, de acordo com a análise de Giacinto Manuppella.

Pelo caráter de D. Maria de Portugal podemos compreender que faria sentido, para esta senhora, registar os modos de cozinhar alimentos, os utensílios de cozinha a utilizar, o receituário alusivo ao recurso a determinados alimentos, ervas e outros unguentos para tratamento de certas doenças. Por isso entendemos a estrutura do Livro de Cozinha, que consta de setenta e três fólios, tendo sido apenas 41 fólios escritos e os outros ficaram em branco.
Os fólios estão divididos em quatro cadernos, num total de sessenta e uma receitas, a saber:

Caderno dos manjares de carne (com 25 receitas) Caderno dos manjares de ovos (com 4 receitas) Caderno dos manjares de leite (com 7 receitas) Caderno das coisas de conservas (com 24 receitas)

Nas primeiras e últimas páginas da compilação aparecem “receitas” práticas para resolução de “medicamentos caseiros”. Trata-se de seis receitas, três no princípio da compilação e outras três no final.

As primeiras são:
– “Este he o modo que se tem pera enguordar framguoos”
-“Pera se fazer sesemta varas de veludo de pelo miúdo” -“vynho dacuquar que se bebe no brasyl que e muit saõ e pera o fígado e marauylhoso”.

As últimas são:
– Receita de Dom Luis de Moura pera os dentes” – Reçeita pera squinecia”
– Reçeita pera fogo ou escaldamento”

O Caderno dos Manjares de Carne começa com a receita dos “Pastéis de Carne”: “Tomarão carneiro ou lombo de vaca ou de porco fresco e toucinho velho, porque põe sabor, e picá-lo-ão com cheiros e uma colher de manteiga e cravo e açafrão e pimenta e gengibre e coentro seco e sumo de limões (…)”. Interessante receita de carne e especiarias tão ao paladar das gentes nobres de antanho. E o que dizer da “Galinha Mourisca” que se sintetiza em pedaços de galinha, fritos, com cebola, salsa, coentro e hortelã? Que cheiro e sabor nos vem do sul, que nos lembra o frango frito das nossas avós?

Alguns aspectos podem ser aqui apresentados para reflexão, nomeadamente o excessivo recurso aos ovos, utilizados na maioria das receitas, para já não falar da gordura animal. Outro aspecto interessante é o frequente recurso à carne picada, desfiada ou mesmo bem pisada ou cozida previamente, para posterior fritura ou assadura. Tal opção explica-se talvez pela dificuldade em que as pessoas de antanho teriam na mastigação dos alimentos, pelos problemas dentários que cedo teriam. De salientar, também, a ausência de uma regra ou normativa dos momentos e da sequência de apresentação dos pratos.

O doce poderia fazer parte do introito da refeição ou poderia surgir no prato principal ou, ainda, para o encerramento. Frequentemente encontramos, por exemplo, receitas de carnes assadas embrulhadas em açúcar ou compotas que dão uma nota de embelezamento do prato, deleite do olhar e do paladar. Quer parecer-nos, por esta compilação
de textos, que os convivas da mesa de D. Maria e seu marido eram obsequiados por pratos predominantemente doces, agridoces e fortalecidos pelo uso constante das especiarias e da “água-de-flor”.

Outras receitas, que pensaríamos mais simples, tornam- se surpreendemente complexas. É o caso dos “Ovos Mexidos”:

“PARA FAZER OVOS MEXIDOS”

Para uma dúzia de gemas de ovos tomarão uma escudela de açúcar e deitá-lo-ão num tacho e então dei-tar-lhe- ão uma pouca de água-de-flor e pô-la-ão sobre o fogo e far-lhe-ão o ponto baixo. Então fareis fatias de pão e deitá-las-eis dentro no tacho e, como estiverem cozidas estas fatias, tirá-las-ão, pô-las-ão num prato. E tereis as gemas dos ovos batidas com a clara, e deitá-los-eis no tacho e, como levantar fervura, com uma colher mexê- los-ão para uma parte sempre. E como se for coalhando, assim ireis mexendo de maneira que não os façais miúdos. E tirá-los-eis inteiros e pô-los-eis em cima do prato, e por cima deitar-lhes-eis açúcar e canela pisada. Então, mandá-los-eis à mesa.”4

O QUE ESTE LIVRO REFLETE NOS COSTUMES E PRATOS TÍPICOS DO ALGARVE

É interessante tentarmos descobrir, no livro da Infanta, o que nele nos une à Cozinha algarvia e o que nos afasta. Infelizmente não temos documentos coevos desta natureza que nos permitam uma comparação. Mas parece-nos que, de forma transversal, encontramos pontos comuns, nomeadamente o frango ou galinha frita, ali designada por “galinha mourisca” com duas receitas mencionadas: na página 13 da edição de 1967 temos a “Galinha mourisca” e na página 45 temos a “Receita da galinha mourisca”, aqui mais elaborada, com mais ingredientes. Decerto que poderia ser interessante procurar, receita a receita, uma comparação com as práticas algarvias mais antigas.

Receita de manjar branco, página original no livro, O “Livro De Cozinha” da Infanta D. Maria de Portugal, que faz lembrar os princípios do contemporãneo arroz doce, mas com galinha.

Uma prática antropológica que no nosso ponto de vista ficaria incompleta porquanto no livro de D. Maria de Portugal: não existe alguma referência a peixe que seria um alimento transversal a todos os grupos sociais, inclusive ao de mais elevado estatuto, não obstante a carne, neste período que o livro abarca, ter sido um alimento preferencial à mesa dos mais ricos.

Entre as dissonâncias podemos anotar, entre outras, o recurso ao azeite na confecção dos alimentos. Se na região norte do país a preferência ia para a gordura animal (toucinho, banha, manteiga) deixando a maior porção de azeite para os boticários e iluminação de casas e altares, no sul, não obstante se recorrer também àquelas gorduras, a preferência ia para o azeite para as frituras, guisados, esturgidos, cozidos.

Neste sentido, poderíamos dizer que no receituário do livro da Infanta predominou o contexto dos territórios de influência nórdica e atlântica, enquanto a influência mediterrânica perdurou na região a sul do Mondego. Na realidade, no livro da Infanta, de um total de 61 receitas, apenas cinco registam a utilização do azeite: “Tigelada de perdiz”, “Receita da lampreia”, “Receita da vaca picada em seco”, “Fartes”, “Biscoutos”.

Por Luísa Martins

ARNAUT, Salvador Dias; MANUPPELLA, Giacinto (ed.). O Livro de cozinha da Infanta D. Maria. Coimbra: Por ordem da Universidade, 1967.
1 Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut (1967).O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. P.XVII. Acedido a 18 de abril de 2022 in: https://books.google.pt/books?id=xv88wu3jyusC&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false2 Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Na Biblioteca Municipal de Faro, em Reservados, encontra-se um exemplar de 1967 autografado por Dias Arnaut.3 Na verdade, o livro de receitas português mais antigo, impresso, que se conhece até hoje é o de Domingos Rodrigues, A Arte de Cozinha, publicado pela primeira vez em 1680.4 Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut (1967).O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis. P.XVII.

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