NOITE DE REIS

Por Susana Jacobetty. Fotografia João Bettencourt Bacelar

A peça Noite de Reis de William Shakespeare (1564-1616), com encenação de Ricardo Neves-Neves, esteve em exibição no Teatro da Trindade durante 2 meses com 45 sessões esgotadas.

Ricardo Neves-Neves

Ricardo Neves-Neves nasceu em Quarteira, no Algarve, e estudou na Escola Secundária Dra. Laura Aires até aos 18 anos, altura em que rumou a Lisboa para integrar a Escola Superior de Teatro e Cinema.

Começou a encenar ainda estudante, e cedo percebeu que queria mais para além do trabalho de ator.

“Quando imaginava espetáculos e peças de teatro, não me via lá, via outras pessoas, estava sempre numa perspectiva de espectador e, o mais perto do espetador que existe no teatro é o encenador. O meu imaginário tocou sempre no teatro.”

Mais tarde fundou a companhia do Teatro do Eléctrico e com ela co produziu, em conjunto com o Teatro da Trindade, um dos espectáculos mais emblemáticos dos últimos tempos.

O convite em 2019 para encenar uma peça no Teatro da Trindade partiu do atual diretor artístico, Diogo Infante, que na altura lhe sugeriu fazer a Noite de Reis de Shakespeare, porque conhecia o seu trabalho e a forte relação com a comédia e com a música. Nesta peça a música tem uma importância alargada e, não havendo registros sobre qual terá sido o repertório usado quando estreou nos primeiros dias do século XVII, em 1601, assume-se que foram usados os hits da época, e foi esse o repertório escolhido que cruza também com a música pop.

“Na criação de um espetáculo existe um trabalho de estudo e construção consequente do que é imaginado, que acontece ainda antes do início dos ensaios. Tem de haver um trabalho de compromisso entre aquilo que é a característica da equipa, os pontos fortes, e usar a força maior de cada pessoa na relação com o espectáculo. Às vezes pode até ser contraditório com a nossa primeira ideia mas vamos fazendo ajustes. Temos que perceber nas audições que matéria de trabalho temos, qual é o impulso criativo das pessoas, e gerir essa matéria. É o barro com que trabalhamos.”

Os atores João Tempera, Filipe Vargas e Marco Delgado, antes do início do espetáculo

A escolha de um elenco masculino foi uma forma de homenagear como se fazia teatro na época, uma vez que as mulheres estavam proibidas de subir ao palco e as personagens femininas eram interpretadas por homens. Sabendo que quando as personagens são todas desempenhadas por homens, aquilo que é levemente sugerido pelo texto torna-se efectivo, e perceber essa dimensão e a carga homoerótica do texto, interessou-o.

“Para o que é que o público olha, vê a personagem, vê o ator ou vê as duas coisas? Eu acho que vê as duas coisas, porque não descolamos da pessoa que está a representar, mas ao mesmo tempo estamos a fazer a construção de uma personagem que estamos a ver e a imaginar, interessa-me muito esse trabalho, porque é uma discussão que está muito presente hoje sobre a escolha de atores e, interessa-me perceber o que é que o espectador vê, se vê a personagem feminina, se vê a personagem feminina desempenhada pelo homem. Acho curioso as dinâmicas filosóficas sobre os géneros e o amor, ou seja para nós enquanto humanos, o que é que é o amor, é entre um homem e uma mulher, ou é um amor entre pessoas.”

Durante a peça podemos apreciar a qualidade dos figurinos de Rafaela Mapril, a cenografia de Ana Paula Rocha, o desenho de luz de Cristina Piedade e, a coreografia de Rita Spider

São 13 atores masculinos em palco, para contribuir para um equilíbrio de género no espectáculo, a composição musical da orquestra tem 13 músicas e cantoras do sexo feminino, e ao todo são uma equipa de 79 pessoas. O espectador enquanto elemento que desconhecem, está fora do contexto de ensaios mas também faz parte do espetáculo. O tom da representação existe em função de uma plateia, e o prazer em saber que as pessoas se emocionam, também é importante.

“Vejo muitas das apresentações lá em cima quase no telhado, num cantinho, e sinto essa emoção, pessoas que eu não conheço, que não me conhecem pessoalmente que se estão a emocionar com uma coisa que nós criámos e isso é um prazer muito grande, é uma partilha quase íntima, seja numa perspectiva dramática ou cómica. O espetáculo é uma massa viva que vai crescendo ao longo do tempo e, de acordo com o estado de espírito dos atores e da plateia, vai-se movimentando, não é sempre igual, e uma das vantagens que é fundamental para os espetáculos de teatro é esta relação do ator e da cena com o palco, o espetáculo pode de facto crescer.”

A entrevista à A Magazine

O objectivo de Ricardo Neves-Neves é poder fazer o trabalho que realiza em Lisboa, no Algarve na freguesia de Quarteira, que é uma freguesia com uma oferta cultural muito baixa, e é nesse sentido que já está a trabalhar.

O ensemble antes do início da peça, que conta com a direcção musical de Mrika Sefa

“Nunca pensei que poderia vir a fazer este caminho, tem sido surpreendente, não estava a contar que fosse assim. O trabalho também se define em quantidade e, tenho bastante, como a possibilidade de o apresentar nos melhores teatros do país, o que é extraordinário.”

Vídeo de Maria Jacobetty Bacelar

Adriano Luz 

Divirto-me imenso a interpretar a Maria, é a primeira vez que faço de mulher, embora já tenha feito esta peça há muitos anos no Porto numa encenação do Ricardo Pais, onde representava o D. Telmo, o alcoólico. É engraçado revisitar de uma maneira completamente distinta a mesma peça e, já não é a primeira vez que me acontece revisitar peças. Sendo que esta é uma versão muito diferente da versão clássica do Shakespeare, é muito ao estilo do Ricardo Neves-Neves, o que lhe confere uma personalidade única. A minha personagem não é muito grande, o que me agradou nesta altura, mas é muito divertida, pelo fato de ser um travesti. Eu gosto de pensar que a Maria é uma espécie de Miss Piggy. Esta peça é musical, mas o que é completamente novo para mim, é o cruzamento de um texto clássico com um estilo improvável. Também é a primeira vez que me cruzo com o Ricardo, que tem um estilo muito particular, muito divertido de fazer os espetáculos, e isso é engraçado. Para nós atores, é uma peça que não nos cansa fazer, é quase uma brincadeira de crianças, e isso é muito gratificante.

A irreverência do Ricardo Neves-Neves fez desta peça um sucesso. É preciso coragem para pegar num clássico e transformá-lo desta forma, como por exemplo ter uma orquestra que toca um cruzamento descarado de música barroca e moderna, como aliás também no texto, a linguagem foi subvertida. Esse descaramento confere uma personalidade muito atrativa a esta peça, que na sua génese já é uma comédia. O Ricardo é muito inventivo, talentoso e, é parceiro de todos os atores. Trabalha imenso, que é algo que aprecio muito.

Cristóvão Campos


Interpretar a Violeta/Cesário, é uma matrioska de sexos, de géneros. É um homem a fazer de uma mulher que se traveste de homem. É difícil de encontrar esse lado, fazer justiça a este personagem sem fazer maneirismos. Como o universo do Ricardo Neves-Neves é tão específico, não quis preparar muita coisa antes, porque o que ele pede é tão particular, que é bom não trazer uma mochila cheia de ideias. Esta Violeta a chegar à Ilídia era quase a Alice a chegar ao País das Maravilhas, era a jovem virginal, a descobrir toda esta loucura à sua volta. A minha preparação foi muito mais de escuta, de estar atento e encontrar o meu lugar entre personagens que são ultra exageradas. Também não queria ter trejeitos, queria ser o mais feminino possível sem fazer uma caricatura de um homem a fazer de mulher.

O Ricardo Neve-Neves conseguiu desconstruir a ideia que as pessoas têm de William Shakespeare. Por vezes esse autor não é muito acessível e sendo esta peça uma comédia, há uma lado de simplificação e popularização, no sentido pop. As pessoas gostam, o texto já tem muita graça, e também o facto de ser uma noite de gays, assumir que são todos homens. Gosto de pensar que Shakespeare quando escreveu esta peça era próximo disso, dessa coisa popular e do travestismo e mudança de gênero. Tudo isso estava lá e é um grande desafio. A trama normaliza este tema, que ele escreveu tanto para a corte como para o povo. Eu acho que as pessoas se riam dos seus preconceitos. E aqui acontece a mesma coisa, também temos por vezes um público conservador, mas que não se sente acossado e, ainda bem. Esta peça tem sido um sucesso porque descomplica Shakespeare e acrescentar modernidade, e bichice.

Dennis Correia
 
É uma diversão enorme interpretar o Valentim. O Ricardo mais uma vez fez uma mistura perfeita entre teatro texto e teatro cantado, e também, com a minha personagem conseguimos trazer dança, mais uma arte performativa. Faço mais duas personagens, o guarda e o padre, para além de ser diretor de caracterização. Poder participar neste projecto é um gosto enorme, chego e saio do espetáculo muito feliz. Considero um privilégio trabalhar com esta equipa, sob a orientação de uma pessoa que considero genial.

O sucesso desta peça vem da criatividade do encenador, que sabe conquistar muito bem o seu público e, da qualidade das pessoas que estão em palco. Considero uma sorte fazer parte deste elenco, com atores e músicos extremamente talentosos. O espetáculo é muito divertido, e desconstrói a ideia de que Shakespeare é maçador. É uma peça leve e, as pessoas saem felizes e satisfeitas. É quase um serviço público.

Filipe Vargas

Gosto muito do trabalho do Ricardo Neves-Neves e já era fã das peças encenadas por ele. Quando me convidou para integrar este elenco, fiquei super contente, é uma pessoa que admiro muito e com quem adorava vir a trabalhar. Fazer este papel é um desafio como ator, nunca tinha feito de mulher, também por ser uma comédia. A construção da personagem foi um trabalho de ensaio de 2 meses, trabalhamos muito para chegar a esta Olívia, acho que foi a personagem com a qual tive mais trabalho até hoje, e estou bastante satisfeito. Também tinha a curiosidade de interpretar Shakespeare, e ao fazê-lo realizei porque é que Shakespeare é Shakespeare, o texto tem muita qualidade. Ele tinha uma noção absoluta da natureza humana, era alguém que sabia muito bem o que eram os homens e as mulheres, o que nos move, e sabia perfeitamente como nos fazer rir. Esta peça tem séculos mas é infalível, porque as situações de humor criadas são tão geniais que resistem ao tempo. Neste projecto a parte visual não é minimamente descurada, tudo é levado ao pormenor. Por exemplo, os folhos, os forros, os laços, mesmo que não se vejam, estão lá. Tenho umas culotes com umas florzinhas que foram vistas talvez só duas vezes, mas eu sei que tenho isso, é muito bom trabalhar com pessoas que têm este nível de exigência e de pormenor.

O Ricardo Neves-Neves é um maestro de orquestra, é mais do que um encenador, ele está a conduzir vários talentos e a fazer com que cada um brilhe e crie uma música comum. A maneira como dirige as pessoas é de uma forma bastante harmoniosa e, consegue ir buscar o nosso melhor. É um espetáculo em que todos estamos contentes com o nosso trabalho, seja qual for a área. O Ricardo Neves-Neves é a pessoa mais doida, mais criativa, mais livre. Quer sempre fazer coisas super diferentes e arriscadas, que nunca ninguém viu. Foi um prazer enorme trabalhar com ele. Esta peça foi um fenómeno como a perfect storm, que tem a ver com quando se reúnem um número de condições necessárias para acontecer determinada coisa que não é muito comum acontecer. Eu acho que isso foi o que aconteceu aqui. Por um lado o Ricardo Neves-Neves já tem o seu público, por outro, ter sido um convite do Teatro da Trindade com o Diogo Infante. O elenco também tem alguns atores muito conhecidos e, o facto de ser uma comédia quase instantaneamente adorada pelas as pessoas, faz com que o boca a boca funcione muito bem. Todos estes fatores contribuíram para que fosse um sucesso e assim foi desde o princípio.

Luís Aleluia

Estou a amar a minha personagem, o tio Telmo. Está sempre bêbado e tive de beber uns shots para me preparar (hahaha). Agora a sério, vou buscar à memória afetiva uma série de coisas. Não é difícil de fazer, o que é difícil é passar alguma verdade, mesmo com humor e, que o texto seja audível e compreendido. E depois todas as noites o espetáculo termina num aplauso em êxtase, como se fosse a noite de estreia e, isso para nós é muito bom, sentir essa emoção, o calor do público.

Há um conjunto de fatores extraordinários que fazem desta peça um sucesso. O texto, uma excelente adaptação, um grande encenador, um elenco fantástico, o espaço maravilho e, um público que vem rendido ao talento do Ricardo. Podem vir assistir sem saberem bem o que vão ver, mas com a antecipação que será um bom espetáculo. Com todo este elenco só podia resultar num bom trabalho. 

Manuel Marques

Estou a adorar este projeto desde o primeiro dia de ensaios, é a primeira vez que faço Shakespeare e, a Noite de Reis, pode ser ou não uma comédia, mas neste caso é uma comédia e, é uma linguagem muito própria do Ricardo Neves-Neves, o que é muito desafiante para nós atores. Interpreto o D. André, um cavaleiro infantil, tolo, cobarde, mas é uma personagem muito engraçada, para mim uma das mais engraçadas da peça em conjunto com as personagens do Luís Aleluia e do João Tempera, são três personagens bem caricatas.

Na pós pandemia voltaram os grandes espetáculos, e este é um grande espetáculo. Somos 13 atores em palco, mais a orquestra composta por 13 mulheres. Estamos a fazer teatro à antiga, como na altura de Shakespeare quando as mulheres eram proibidas de representar e as personagens femininas eram representadas por homens, o que confere uma estética muito engraçada. O termo drag, vem de Shakespeare, porque os homens que faziam de mulheres eram os drags. E depois o sucesso deve-se à linguagem do Neves-Neves que em palco, funciona com várias dimensões, e toda a estética, e o facto de termos uma orquestra enriquece muito a peça.

Marco Delgado

 É um privilégio muito grande interpretar o Malvólio, nunca tinha trabalhado com o Teatro do Elétrico e com o Ricardo Neves-Neves, com quem há muito queria trabalhar. Reunimos um conjunto de artistas e atores, equipa técnica e artística de muita qualidade e talento, o que foi uma experiência muito positiva, conseguimos fazer um espetáculo de grande qualidade, uma comédia muita engraçada. é muito prazeroso estar a trabalhar todos os dias com as casas esgotadas, é um privilégio enquanto ator. Desde o início que tivemos a sensação de que ia ser um espetáculo que iria agradar muito o público e, temos estado esgotados desde o princípio. Agora vamos para Coimbra e depois para Loulé.

A cabeça do Ricardo Neves-Neves tem uma capacidade criativa muito grande, tem um espectro de comédia que é bastante abrangente e, consegue ir buscar públicos de vários géneros. Também a sua capacidade estética, o ponto de vista dele sobre um clássico, que na minha perspectiva são sempre para serem alterados, os clássicos não são intocáveis, são sobretudo peças para se reinventarem. O Ricardo adaptou de uma forma muito engraçada, esta comédia de shakespeare. Acho que é um espetáculo versátil que chega a um público transversal e muito diferente.

Renato Godinho

Sinto-me muito bem e, é muito divertido interpretar o duque Orsino. É uma personagem um pouco intermitente na peça, mas abre o espetáculo, que é sempre uma sensação boa numa alta comédia, porque dá o tom, o ritmo e, nesta trama que tem uma linguagem muito própria, sinto uma responsabilidade acrescida. No entanto tenho um trabalho de ator diferente dos outros, porque passo a peça quase toda dentro de uma banheira, o corpo que normalmente é uma ferramenta primordial no nosso trabalho, neste caso é uma ferramenta limitada. Não só é limitada na expressão como no uso técnico. Eu tenho a voz muito cansada porque tenho muita dificuldade em apoiar a voz no diafragma na posição em que estou. O corpo nesta personagem, é um obstáculo tanto técnico como de expressão, trabalho mais a expressão facial, e as mãos, mas é gratificante.

O sucesso desta peça deve-se à imensurável criatividade do Ricardo Neves-Neves, que conseguiu adaptar um texto clássico com quase 500 anos e transferir-lhe uma modernidade louca. O público tem-se divertido imenso, acho que é o que as pessoas procuram, rir muito.

Ruben Madureira 
 
O Bobo é uma personagem muito peculiar e, na obra de Shakespeare é aquela personagem em que lhe é concedido o poder de dizer tudo livremente. É a personagem que se envolve com todas as outras e, sabe muito bem o desenrolar da trama, mas não alerta ninguém porque se diverte muito a ver o teatro todo a arder. Sinto-me muito feliz nesta peça. Quando escolhemos fazer teatro, considero que é um grande ato de coragem, subir a um palco, acredito realmente nisso. Todos nós temos os nossos medos, as nossas fragilidades, estamos ali expostos, em frente a um público numa sala cheia, todos os dias. Este espetáculo revelou-se um bombom na minha vida, no meu percurso, não só por ser um sucesso, mas também por esta equipa que se dá como uma família, o que é comovente.E isso é o mais importante que vou levar, não tanto o papel que fiz ou o tanto que me diverti, mas esta malta com quem eu trabalhei, o backstage. O que mais me diverte é estar nos bastidores, brincamos uns com os outros e, depois vamos brincar dentro da partitura no palco.

A visão do Ricardo Neves-Neves, aliada ao escritor mais irreverente de todos, transfere uma nova dimensão à peça, o que nos faz a nós primeiro duvidar e, depois de entrar no comboio, brincar com aquilo que ele pede. Começarmos a acreditar que há formas novas de nos auto divertirmos, de nos auto resconstruirmos enquanto atores, o que tem sido maravilhoso. Eu gosto muito de Shakespeare e, o que torna esta peça tão apelativa para o público é não estar só direcionada num sentido, numa só personagem, o ser abrangente, não tem apenas um protagonista, todas as personagens têm o seu tempo e as suas cenas. O feedback do público é sempre relativo a várias personagens e, nunca só a uma. Isso revela que a obra quando foi escrita, também não foi pensada num só sentido, o que permite que várias pessoas se consigam identificar.