
“O Flamenco é uma língua que parece a minha língua mãe. Quero viver a dança com toda a minha liberdade interior. Só quero continuar a ser Eu e nunca trair quem sou.”
Patricia Guerrero nasceu em Granada no Bairro Albayain, em 1990. Com raízes flamencas profundas, sempre adorou explorar outros estilos de música e dança. No entanto, o Flamenco é a sua linguagem, uma linguagem que adapta à sua visão, uma linguagem que está sempre a envolvê-la. Além dos muitos prémios que tem ganho ao longo do seu percurso, recebeu o Prémio Nacional de Dança 2021 pelo Ministério da Cultura de Espanha.
Por Susana Jacobetty
Fotografia João Bettencourt Bacelar









Vestido Pablo Arbol, xaile Juan Foronda, sapatos Senovilla.


Camisa Uterque, saia Manuela Macias.
Quais são as tuas primeiras memórias em relação ao flamenco?
Pertencem à infância, à brincadeira. O flamenco está presente desde muito pequenina. A minha mãe tinha uma academia, com crianças e vários grupos e eu andava sempre por ali a brincar, recordo isso. Juventude, diversão… Depois cresci, amadureci. O meu bairro, o Albaycín, em Granada, com a Alhambra em frente, é um lugar onde o flamenco é vivido e sentido. Fui criada nesse ambiente. Para mim, o flamenco tem o cheiro a Sacromonte, Alhambra, pátios árabes, açudes e, claro, à minha terra. Obviamente que tudo isto se foi modificando. Vim para Sevilha. Já estou aqui há muitos anos. O flamenco acabou por me dar outro tipo de cheiros e aromas.
O que significa para ti o flamenco?
É costume dizer-se que é uma forma de vida e não gosto porque sou muitas coisas para além de bailaora. Mas é verdade que o flamenco é essa parte da minha vida que me preenche, presente na maioria do meu tempo e que encaro como uma expressão artística. É a voz de um povo, forma e expressão de uma terra na qual a gente é muito particular, genuína. É frequente usar o adjetivo puro por essa razão porque o flamenco é muito verdadeiro. Tem aí a sua origem, na terra, na gente, no povo. Se chegar a quem o vê pela primeira vez, ficará marcado pela vida inteira. Para mim é autêntico e especial. Uma arte particular que apenas existe aqui. É evidente que entretanto se tornou internacional e há muita gente a tocar, dançar e interpretar flamenco, mas continua a ser de aqui, de um lugar determinado. E é procurado pelas pessoas.
Quem são as tuas referências, e pessoas que admiras no Flamenco?
Os bailaores Mario Maya, Carmen Amaya, Milagros Mengibar, Manuela Carrasco, Eva la Yerbabuena, Farruquito e Ruben Olmo. O flamenco é uma pedra preciosa que deveria receber mais atenção e cuidado por parte das instituições. É o nosso património.
O que sentes quando danças?
Muitas coisas. Depende do dia. Acredito que a criação e a interpretação da arte, seja no caso de um pintor, escritor ou intérprete, dependem de como estás, da sensação que manténs contigo mesmo. Em alguns dos meus espetáculos temáticos, como Catedral ou Distopia, é possível ver que um dia nada tem a ver com o dia seguinte. O meu estado é diferente. Ainda que esteja a contar a mesma história, interpreto várias mulheres de maneira diferente. Essa é uma possibilidade outorgada pelo flamenco. A música é ao vivo, os músicos interpretam e tu interages com eles. É impossível que o mesmo ocorra num dia e no seguinte. Entro num cenário… o ideal é não pensar; abandonar-te ao que sentes, ao baile, ao canto e à música. Mas há vezes em que pensas na energia das pessoas, do público e do que estás a transmitir. Há momentos no palco em que podes pensar nisso tudo. Mas gosto de chegar ao clímax, em que sinto muito mais do que penso.
Qual é o teu estilo de flamenco preferido?
Muitos. Todos. Mas, enfim, gosto da Seguirya, da Bulería por Soledad, das Alegrías (sem dúvida) e dos Tangos da minha terra, um palo* que em Granada é bailado de maneira diferente à de outros lugares; é mais lento, mais profundo, menos festivo.
E a tua sevilhana preferida?
A sevilhana é um palo* muito festivo, de celebração e festa. Interpretei várias sevilhanas sobre o palco mas há uma específica, a “Sevilhana de Triana”, de que gosto. Chego a cantar e diz assim: “quando passo pela ponte de Triana contigo minha vida, contigo minha vida”. É muito bonita


Vestido com cauda por Mari Carmen Bueno, avó da artista.
Que sonho tens ainda por realizar enquanto bailaora de flamenco?
Mais do que a questão sobre o que quero fazer no futuro, sempre tive outra sensação, ou maneira de trabalhar, que é perceber o que quero no momento, o que desejo, o que mexe cá dentro, a verdade que precisa ser contada ou expressada. Tive uma evolução natural. No início eram espetáculos pequenos, depois a companhia (de dança) cresce. Hoje temos um espetáculo grande a acontecer, com sete bailarinos; é algo mais ambicioso. O meu sonho é continuar a sentir-me preenchida com o que faço. Dar algo ao flamenco e ele a mim. E levar a minha companhia a pensar em grande, aos grandes palcos. Sinceramente, depois da pandemia nada me parece ser impossível de realizar.
Quando não estás a dançar, o que gostas de fazer?
Encher-me de arte, ler. Gosto dos romances de Jane Austen. O meu preferido é Sensibilidade e Bom Senso. Também gosto do Ema. Na realidade, gosto de toda a obra de Austen. É surpreendente que ela, enquanto mulher nessa época, apesar de só contar histórias, fosse capaz de escrever com essa crítica peculiar. Gosto de cinema, mas vou muito mais ao teatro. Um programa de sexta-feira à noite é ir ao teatro e depois jantar. Gosto de estar com os meus amigos e com a minha família. Há vezes em que, ao regressar de uma viagem longa, largo as malas e vou ter com alguém para tomar um copo e desanuviar.
O que gostas mais da Andaluzia?
A sua gente: as pessoas são muito especiais, próximas. Gosto da alegria, da luz, dos cheiros. Por exemplo, na primavera, Sevilha cheira a laranjeira e, no inverno, Granada cheira a madeira defumada porque com o frio são acendidas as lareiras.
Quais os teus sítios preferidos em Sevilha?
O bairro de Santa Cruz. Acho a praça de Santa Cruz maravilhosa e possui um tablao** mítico, o de Los Gallos; a Maestranza com o rio e a ponte de Triana. E as “setas”, na Encarnación. Para sair à noite, Los Gallos, o Arenal, o restaurante el Comedor, à frente da igreja de San Luís de los Franceses que é muito bonita, o Contenedor ou as Bodegas (caves) San Eloy. Para tapas, o Rinconcillo, que é muito famoso, fica junto à calle Sol.


Palacio de las Dueñas
Há uma forte tradição flamenca na Casa de Alba, como a relação da condessa de Teba, mãe da duquesa consorte do XV duque de Alba e da imperatriz francesa Eugénia de Montijo, com Prosper Merimee. O autor francês chega a enviar-lhe cartas sobre a construção da personagem da Ópera Carmen. Ainda é de salientar a presença de António Machado Álvarez, acérrimo defensor da democracia, investigador das raízes do folclore e pai dos poetas Manuel e António Machado (nascido no Palácio das Dueñas) que trabalhou para a Casa de Alba, ou a relação de Manolo Caracol com o avô do atual duque, que chegou a cantar no salão A Cigana de Dueñas, aos reis Alfonso XIII, Eduardo VIII, à rainha Victoria Eugénia e ao Príncipe de Gales. A duquesa Cayetana teve como professor de baile flamenco o bailaor Enrique el Cojo. O tablao ou o estrado, onde tinham lugar as aulas, encontra-se agora num dos salões do Palácio de Dueñas.

* Palo ou cante é o nome dado no flamenco para as diferentes formas musicais tradicionais. A palavra palo, em espanhol, tem vários significados, sendo o principal “pau”, “vara” ou “árvore”, mas neste caso tem o sentido de categoria ou classificação.
** Um tablao é um lugar onde ocorrem espetáculos de flamenco.
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