José Carlos Barros

Por Susana Jacobetty

José Carlos Barros nasceu no Norte, mais concretamente em Boticas, Trás-os-Montes, em 1963. Cedo manifestou o enorme gosto pela leitura, mas foi em Arquitetura Paisagista que se licenciou. No seu percurso profissional dedicou-se à salvaguarda de outra paixão, o Ordenamento do Território e a Conservação da Natureza. Foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa e da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, assim como gestor da Mata Nacional das suas Dunas Costeiras e vice presidente da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, onde continuaa desempenhar o cargo de vereador. Foi técnico superior do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e Diretor dos Serviços de Natureza, Educação Ambiental e Consumo da Direção Regional do Ambiente do Algarve, funções que desempenhou sempre a par com a escrita, e que lhe valeram vários prémios ao longo dos anos, nomeadamente o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, o Prémio Guerra Junqueiro, o Prémio Literário Vila de Fânzeres, o Prémio de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, e em 2021 é o vencedor por unanimidadedo Prémio Leya numa prova cega, com o livro As Pessoas Invisíveis.

O escritor, poeta, arquiteto paisagista, ecologista, político, pai, avô e agricultor, recebeu-nosna sua quinta em Vila Nova de Cacela onde reside, um dos agroturismos mais antigos do Algarve, num fim de tarde ameno. A conversa, prazerosa, fez-se à sombra de uma árvore longe da beira da piscina, com os pés descalços na relva, macia e fresca.

DE BOTICAS PARA O ALGARVE?

Quando fui para a Universidade, estava na área de ciências mas sem vontade de seguir engenharia. Tinha lido a “Aparição” de Vergílio Ferreira, que se passa em Évora, e apercebi-me que se fosse estudar para Évora e para Arquitetura Paisagística podia ser aluno do professor Gonçalo Ribeiro Teles. E esta conjugação de coisas fez com que escolhesse ir para Évora. Concretizei os dois objetivos que tinha na altura: o de ir estudar para o Colégio do Espírito Santo, para a cidade da “Aparição”, a cidade branca que aparece como uma revelação em muitos sentidos e ser alunodo professor Ribeiro Teles. A conjugação destas duas coisas deu-me um clique fantástico: posso ir estudar para a cidade da “Aparição” e posso ser aluno do professor Ribeiro Teles. Depois casei com uma algarvia que conheci na universidade e vimparar ao Algarve. Tenho uma filha e três netos. Comecei a ir ao Algarve com muita frequência aos 22, 23 anos de idade. Depois de acabar o curso ainda fui trabalhar para o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e só depois vim viver para o Algarve.

QUAL O GRANDE ENSINAMENTO QUE TEVE DO ARQUITECTO PAISAGISTA E SEU PROFESSOR GONÇALO RIBEIRO TELLES?

Foi o de nos ensinar a olhar para as coisas na sua globalidade, olhar para o território no seu conjunto, perceber que a paisagem é essencialmente o resultado de uma conjugação permanente entre o território e a ação humana, ou seja, que a paisagem é uma construção. A paisagem é o melhor retrato daquilo que uma sociedade é, porque é o resultado da interação que temos com o território. Quando existem paisagens desestruturadas, onde não há cuidado, não se percebe o ciclo da água, nem a erosão, não se compreende como se pode construir a biodiversidade. Se esta for a realidade, é um reflexo de falta de cultura da parte de quem está a construir essa paisagem. O grande problema é que as paisagens tradicionais, ricas do ponto de vista da biodiversidade e do próprio respeito pela diversidade, são construídas por comunidades muito cultas, que são as comunidades rurais, que conseguem viver do que a terra lhes dá. Conseguem fazer essa coisa espantosa que é não irem ao supermercado comprar alimentos. Nós fomos perdendo essa cultura, fomos nos tornando em pessoas com outras sabedorias, com mais conhecimentos, mas que já não têm essa capacidade de olhar o território e o compreender. O professor Ribeiro Telles procurava muito que os seus alunos soubessem compreender o território nessa sua globalidade, como é o ciclo da água, como se protegem as encostas da erosão, como se defendem os bons solos agrícolas, como se promove a biodiversidade. Foram estes os grandes ensinamentos, e espero que nos sítios onde trabalhei possa ter deixado um pequeno contributo através desse olhar sobre o que é o território.

QUE CONSIDERAÇÕES TEM PARA O NOSSO TERRITÓRIO?

Eu vivo numa quinta em Vila Nova de Cacela, onde 85% dos seus hectares são de cultura não regada do sequeiro algarvio de figos e alfarrobas. Não é por acaso, mas por um gosto de saber que é possível não usar água na maior parte deste espaço, que posso promover a biodiversidade. Não utilizamos químicos há 10 anos.
Não acredito nas grandes causas. Acho que as mudanças se fazem no essencial através de pequenos gestos individuais. E se cada um puder ir fazendo uma pequena coisa, acaba por contribuir de uma maneira decisiva para uma mudança maior.

Para a zona do Algarve e do restante território nacional, considero que se deve seguir o exemplo e aprender com essas comunidades cultas, que sempre compreenderam que a água sempre foi um bem escasso. É necessário usar a água com parcimônia. A natureza deu-nos mecanismos absolutamente fantásticos, nomeadamente o sequeiro algarvio com o figo, a alfarroba e a amêndoa, que são culturas cada vez mais valorizadas. Mas que o Estado não liga nenhuma, não são apoiadas. Lamentavelmente só apoiam culturas para destruir solos como é o caso das estufas de frutos vermelhos, onde se investe muito dinheiro. Nós não temos um Ministérioda Agricultura. Temos uma espécie de direção geral para distribuir fundos comunitários. E as discussões internas são sobre se estão a aproveitar todos os fundos comunitários que podem ser adjudicados, quantos desses fundos se consegue gastar. A questão devia ser outra: estamos a utilizar esses fundos para quê e em favor de quê? Estamos a fazer uma agricultura no Algarve que não é sustentável do ponto de vista ambiental, nem positiva do ponto de vista social. Os trabalhadores dessas estufas vêm de países como o Nepal, vivem em péssimas condições, ganham muito mal e são explorados.

QUAL É A POLÍTICA DO GOVERNO PARA O ALGARVE EM TERMOS DA AGRICULTURA?

Essa é uma pergunta que gostaria de ver respondida. O ordenamento do território faz as perguntas essenciais que consistem em como nos devemos organizar e dar as respostas em função dessas necessidades. É do conhecimento geral que vem dinheiro comunitário, mas não se tem conhecimento de onde será aplicado. Neste momento não há ordenamento do território, não há um aproveitamento real das nossas potencialidades e, desse ponto de vista, o pomar de sequeiro algarvio é desde logo simbólico. Como é que o Estado não está a apostar na alfarroba? – que hoje é um produto extremamente valorizado e que não é aproveitado integralmente porque não temos uma indústria de transformação. A paisagem e o território não parecem ser uma prioridade nas decisões políticas nacionais. Os governos têm uma grande responsabilidade em identificar o que querem do território e da paisagem. Um dos grandes problemas em Portugal é de não se fazer ordenamento do território. Há anos que não são feitos planos regionais de ordenamento do território, assim como o Plano Diretor Municipal*. A maior parte dos Concelhos não tem PDM.

QUANDO COMEÇOU A ESCREVER?

Comecei a escrever desde muito cedo. Escrevia uns versos e uns textos em jovem. Publicava uns contos na imprensa regional e quando descobri o Diário Jovem que era um suplemento do Diário de Notícias, os textos ganharam outra relevância. E porque tinha textos premiados no DN e poemas impressos na capa do suplemento, revelou-se uma altura muito importante, onde se criou um universo muito interessante. Nessa época estava a começar a estudar em Évora. Fui continuando a escrever, essencialmente poesia, talvez porque a prosa exige uma disciplina que eu não tenho. E como sou muito pouco inspirado e tenho de trabalhar muito para conseguir escrever uma página, evitava escrever textos longos. Não sou propriamente escritor, nem gosto de me apresentar como escritor. Gostava de ser, porque nunca me dediquei à escrita como a escrita exige. Um escritor deve fazer da escrita a sua atividade principal.Mas há qualquer coisa que é difícil de explicar. Não gosto de romantizar muito isto, mas em determinadas alturas há qualquer coisa que me obriga a regressar à escrita, sempre com um pé dentro e outro fora. Não tenho conseguido escapar disso.

RECORDA-SE DOS PRIMEIROS LIVROS QUE LEU?

Comecei a ler muito cedo, mas recordo-me mais de imagens e ambientes do que propriamente dos títulos. Todas as sextas feiras à tarde desde a escola primária, o meu pai levava-me à biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian. Nasci num mundo com muito poucos livros, embora na minha casa até houvesse alguns – o que não era normal nas casas do sítio onde nasci. Os primeiros livros que li foram os livros para aprender a ler. Lembro-me que eram de aventuras no mar com piratas. Na minha juventude o autor que mais li foi Vergílio Ferreira. Para mim, a literatura tem sempre a ver com a capacidade de através das palavras se criar um universo novo. Um livro que conte histórias interessantes, mas que não tenha essa capacidade de através da linguagem criar um universo, não tem relevância. A literatura é a diferença entre um relato e a capacidade em se criar um mundo novo. A escrita de Vergílio Ferreira transmitia exatamente essa ideia: há medida que escrevia estava a criar o seu próprio universo. O livro que mais recordo desses tempos é o “Alegria Breve”.

NA SUA OPINIÃO, QUAIS SÃO OS LIVROS ESSENCIAIS PARA UM LEITOR?

Há sempre bons livros e também há os clássicos. Ainda não os li todos, mas em compensação já li várias vezes o “D. Quixote de La Mancha” de Miguel de Cervantes (1605). Faço coleção de Quixotes. Tenho uma coleção interessante que inclui a primeira edição editada pela revolução de Cuba de Fidel em 1959, que também foi o primeiro livro a ser editado por eles como símbolo de sonho e dessa magia que a literatura pode trazer. Este livro é um ótimo exemplo do que é a grande literatura “Num lugar da Mancha cujo o nome não me quero lembrar” isto remete logo para uma pergunta, mas cujo o nome não se quer lembrar porquê. E é um livro que permite essa coisa fantástica que é ler-se três ou quatro capítulos e, passado um tempo, regressar e ler mais outro capítulo. Podemos voltar para trás ou passar para a frente. Acho que o “D. Quixote” é um livro tão rico que permite uma leitura lúdica, sem nos preocuparmos com a componente didática, muitas vezes subjacente à leitura. Mas para mim livros essenciais são os clássicos, como o “D. Quixote”, e depois dois grandes escritores muito diferentes, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, pela ironia, pela capacidade de retratar as personagens, pela genialidade. Os meus preferidos do Camilo são a “Brasileira de Prazins” e o “Amor de Perdição”, do Eça, talvez seja póstumo, mas é a “A Capital”. Depois os livros de Júlio Dinis também fizeram muito pelo meu amor à literatura com a “A Morgadinha dos Canaviais” ou “Uma Família Inglesa”. Jorge Luís Borges é um dos meus escritores preferidos. Na contemporaneidade há uma estreia deliciosa da jovem autora Marta Pais Oliveira, “Escavadoras”, que tem uma linguagem que nos suga para um universo que nos retira do nosso espaço.

Alguns exemplares da coleção de “D. Quixotes” de José Carlos Barros

QUANDO ESCREVE MANIFESTA AS SUAS CRENÇAS RELATIVAS À ORDENAÇÃO DO TERRITÓRIO?

A minha escrita está de facto muito associada à ruralidade, mas também a alguém ligado ao território, enquanto arquiteto paisagista. Isso é evidente, embora não seja propositado. Nos meus livros há uma força dos lugares, há uma força da natureza.

A SUA RELAÇÃO COM A LEITURA E COM A ESCRITA MANTÉM-SE IGUAL?

Nesta fase da minha vida leio menos do que lia na juventude. Em jovem sentia uma necessidade imensurável de ler, sentia um verdadeiro prazer que agora raramente consigo ter. A leitura, assim como a escrita proporcionam uma sensação fantástica, mas exigem duas coisas: primeiro estarmos sozinhos, porque é um ato individual, e tempo, precisamos de ter tempo e disponibilidade mental.

O QUE SIGNIFICOU GANHAR O PRÉMIO LEYA COM A OBRA AS PESSOAS INVISÍVEIS?

O prémio, para além de dar visibilidade ao livro, deu-me a possibilidade de conhecer os leitores. Um livro é o que lá está, mais aquilo que a experiência individual de cada leitor leva para dentro dele. É fantástico perceber como é que um livro pode estar sempre a mudar com os bons leitores. Este livro foi escrito em dez anos, se não tivesse ganho este prémio, como diria aos meus netos que o avô tinha estado dez anos da sua vida a escrever um livro que ninguém ia ler. Fico muito contente que por causa do prémio o livro seja falado, mas principalmente lido.

#Plano Diretor Municipal (PDM)
É o instrumento que estabelece a estratégia de desenvolvimento territorial municipal, a política municipal de solos, de ordenamento de território e de urbanismo, o modelo territorial municipal, as opções de localização e de gestão de equipamentos de utilização coletiva e as relações de interdependência com os municípios vizinhos, integrando e articulando as orientações estabelecidas pelos programas de âmbito nacional, regional e intermunicipal. É de elaboração obrigatória, salvo nos casos em que os municípios optem pela elaboração de plano diretor intermunicipal.

Ilustrações de frutos por José Carlos Barros