Maria João Gomes

Os entraçados vegetais sempre estiveram presentes na história da humanidade, intuitivamente, a partir do momento em que era necessário o transporte de algo de um sítio para o outro. E no princípio começaram por se enrolar os objetos em folhas. A empreita feita com palma, folha da palmeira, é uma tradição secular do Algarve, onde a matéria prima é abundante. Para Maria João Gomes, criadora da marca Palmas Douradas, a palma existiu desde sempre na história da sua família.

Maria João Gomes descende de uma família do Açafal no concelho de Tavira, Algarve, mas cedo vai viver para Paris com os pais. Quando regressava, nas antigas férias grandes, passava dois meses em casa dos avós,e essa época coincidia com a apanha da palma. Lembra-se de ouvir a avó dizer “apanha-se a palma desde a última chuva até à primeira”. Isto porque nesse tempo chovia até final de Junho e começava a chover novamente em Setembro.

Logotipo da Edição impressa  N3 da A Magazine criado em Palma do Algarve pela artesã

Recorda que nas férias em casa da avó Maria, as folhas da palmeira estavam sempre presentes. Ajudava a avó a apanhar as palmas, a prepará-las, participando de todo o processo. Eram meses felizes passados no meio das palmas. Lembra-se de ouvir histórias sobre a sua bisavó e trisavó, que também trabalhavam com esta matéria-prima. A avó aprendeu com a bisavó, assim como a bisavó com a trisavó. Eram saberes muito antigos que passavam de geração em geração.

“Primeiro tem de se apanhar a palma, depois colocar a secar entre 8 a 10 dias. Têm de se virar todos os dias. Depois é rachada, cortada, posta em molho e de seguida ripada. Há todo um processo grande e moroso, até estar finalmente pronta para entraçar. Finalizada a fase da preparação da palma, vem a da realização da peça que também leva muito tempo. E se ainda quiser branquear a palma são mais 7 dias. É deixada no fundo de um bidão com enxofre. O processo artesanal de branquear ou de tingir as palmas são saberes muito antigos que já estão quase esquecidos.”

Apanha da folha da palmeira na serra Algarvia. Fotografia Filipe da Palma.

Entraçamento da folha de palma. Fotografia Filipe da Palma.

A avó Maria fazia alcofas e gorpelhas*, uma peça muito grande que se punha em cima do burro para colocar azeitonas, alfarrobas, etc. O avô fazia tudo
o que fosse necessário em madeira e a avó tudo o que era de empreita e cana. Chegava a fazer rolos de empreita (trança) para vender a metro. Naquela época tudo era feito com empreita, nomeadamente os chapéus e as vassouras. A palma estava presente em tudo e em todo o lado, principalmente nas casas mais desfavorecidas; nas privilegiadas a cortiça era mais utilizada. A avó também branqueava a palma primeiro, porque a palma branca tinha mais valor. A escura, a natural com que agora se trabalha, era destinada aos pobres. Quando chegou a Portugal, Maria João foi aprender a técnica de entraçar as palmas que já tinha esquecido e que outrora tinha aprendido com a avó. Começou por ser um hobby, por amor às palmas e a tudo o que é algarvio e português. “Vi-as tão bonitas… tinha muita vontade de fazer peças com elas. Como emigrante, a minha sensibilidade estava ainda mais apurada. O olhar para o que é nosso ficou mais atento e dei muito valor a esta arte.”

Apercebeu-se que existiam variadíssimas técnicas e resolveu aprendê-las. No entanto, foi um processo difícil: as pessoas que ainda sabiam fazer não queriam ensinar porque consideravam que o segredo era a alma do negócio. “Foi um período de sedução com as pessoas idosas da serra.” Chegou a deslocar-se a Marrocos para poder aprender a técnica de cozer ao quadrado, porque no Algarve já nem ninguém sabia ensinar.

Depois de aprender todas as técnicas possíveis, também criou uma, a espiral, que já está registada. A marca Palmas Douradas nasceu em 2016 e é trabalhada exclusivamente com matéria prima da serra do Algarve. É apanhada manualmente pela artista, tendo apenas ajuda da família e amigos quando tem pedidos muito grandes: “Podem ser dias inteiros na apanha, assim como a entrançar”. As folhas da palmeira são colocadas na açoteia do seu atelier, que fica no Museu do Traje de São Brás de Alportel, e depois trabalhadas artesanalmente por Maria João.

 

Secagem das folhas de palma na açoteia. Fotografia João Bettencourt Bacelar

Com uma nova abordagem deste saber milenar, a marca Palmas Douradas posiciona a arte de trabalhar manualmente com a folha da palmeira, atravésde um design contemporâneo, criativo e inovador. São hoje consideradas peças de luxo, e têm sido vários os designers e marcas reconhecidas na áreada moda nacional e internacional, que a procuram para realizarem parcerias. Por exemplo, Filipe Faísca, Maria Gambina, Casa Christian Louboutin ou a Casa Hermés, para além das celebridades que exibem algumas das suas peças nas redes sociais.

Nos últimos 12 anos, tem realizado alguns workshops de forma a poder ensinar a entraçar, com o intuito de preservar esta arte tão bonita e tão antiga, do seu tão querido Algarve, do nosso tão querido Portugal.