Bosch Tentações Contemporâneas por Pedro Zamith

Aconteceu ontem em Lisboa no Museu Nacional de Arte Antiga, a inauguração da exposição Bosch Tentações Contemporâneas de Pedro Zamith.

O tríptico As Tentações de Santo Antão, do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516), habitualmente exposto na sala 61 do Museu Nacional de Arte Antiga, foi cedido até 12 de março de 2023, para a exposição Bosch e un altro Rinascimento, a decorrer no Palazzo Reale de Milão.

O Museu convidou o artista plástico, Pedro Zamith, a fazer uma interpretação da obra original do século XVI, com o intuito de ser colocada no mesmo espaço da sala 61. A obra deste artista que foi expressamente criada para esta exposição, reflete um olhar do nosso tempo com a mesma inspiração.

O Jogo da Memória  por Anísio Franco

Quando o visitante chega à sala 61 do Museu Nacional de Arte Antiga ansioso por ver as famosas Tentações de Santo Antão de Hyeronymus Bosch, depara-se com uma situação inusitada: em vez de descobrir a pintura, encontra um tríptico de fundo escuro com uma série de pinturas de colorido intenso compostas por figuras estranhas aplicadas. Cada uma das figuras remete de imediato para um imaginário familiar: são icónicas da criação artística do próprio Bosch. Estes pictogramas dão a ver uma linguagem que todos reconhecemos; mesmo aqueles que antes não tenham visto as «Tentações» do Museu de Arte Antiga percebem que aquelas figuras híbridas, deformadas e estranhas, têm como referência o imaginário do pintor holandês.

Pedro Zamith, o artista plástico que as pintou, joga com o pressuposto da memória coletiva. Não esconde a fonte direta de inspiração, pelo contrário acentua-a, ao colocar cada uma das figuras recortadas no fundo escuro no lugar exato da figura referente à pintura original. A Zamith não interessa a narrativa interna deste tríptico, não lhe interessa a hagiografia de Santo Antão; importam-lhe apenas as figuras monstruosas, descritas por Santo Atanásio de Alexandria na biografia do primeiro santo do deserto, em particular quando teve de lutar contra o demónio e corte infernal, interpretadas por Bosch.

Ao utilizar um traço gráfico moderno, simplificado, que deriva da banda desenhada, torna a leitura imediata, coloca as pinturas no universo da contemporaneidade. Esta forma de representação torna a perceção quase instantânea, pois os pictogramas provocam estímulos no banco de memórias acumuladas no cérebro. Zamith joga com essa perceção apressada. O cromatismo intenso das figuras vem da publicidade moderna, e isso projeta-nos para outro campo. Se os estímulos iniciais identificam as figuras com a pintura de Bosch, algo de estranho e surpreendente se passa nos detalhes.

As Tentações de Santo Antão, Hieronymus Bosch, século XVI

Pedro Zamith

À partida as formas lineares são de Bosch, mas os adereços são de outro tempo. Reconhecemos sinais atuais do consumo de massas, mas também símbolos que remetem para a guerra, particularmente para a Segunda Guerra Mundial, símbolos de totalitarismo, de extermínio, como se as «Tentações Contemporâneas» caminhassem todas no mesmo sentido. A propositada mescla de imagens de consumo com as da guerra demonstra que tudo faz parte do mesmo universo.

O título dado pelo artista a esta série de obras, O que é Bosch é bom, é mais um subterfúgio usurpado da publicidade que nos devora e simultaneamente apaga e planifica o indivíduo e o seu sentido crítico, segundo um programa concertado para criar uma amnésia generalizada por trás da qual se escondem os piores infernos. A Zamith interessa tanto o Jogo da Memória como o exercício que impede o esquecimento, que é afinal esta obra, algo que obriga a fechar os olhos para que se avivem e aclarem as imagens daquilo que importa guardar na memória. Zamith «reenvia-nos ao passado (e suporta o futuro) pelo reforço da consciência de nós próprios», como diria Pedro Cabral no Paradoxo do cérebro.

A exposição Bosch Tentações Contemporâneas, estará patente até dia 19 de Março, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, Portugal.