Sapatos de Ourelo

Os sapatos de Ourelo são lamentavelmente mais uma arte extinta em Portugal. Com o seu berço nos saberes e fazeres tradicionais da mulher algarvia de Olhão, foram criados há mais de 150 anos pelas mulheres dos pescadores de uma única família, a família Moura. De confeção caseira e artesanal, tinham o propósito de aquecer os pés das mulheres que iam de madrugada à praia, para receber os maridos, os pais e os filhos, que traziam o peixe do mar.

Esta tradição secular passava de geração em geração. Os sapatos eram feitos com o ourelo (margem ou borda) do tecido das fardas de inverno dos soldados, pregavam-se várias fitas do ourelo e pelica numa forma de madeira, com um apontamento de pele de coelho, tendo inúmeras possibilidades estéticas, quer a nível de desenhos como de cores. Na zona litoral tinham o nome de chalocas e na zona do interior de cloques, isto devido ao som da madeira a bater no chão enquanto andavam, sendo que também havia a opção de não terem madeira, apenas sola e pele. Durante quase 2 séculos, as mulheres desta família confecionaram os sapatos de Ourelo que depois vendiam nas feiras e mercados por todo o Algarve. Na primeira metade
do século XX, chegaram a ser o calçado mais usado
da região.

Camponesa Ezequiela de Sousa Jerónimo (1918-2012), descendente dessa família, foi a última artesã de sapatos de Ourelo, arte que aprendeu com sua mãe, Umbelina Livramento Moura. Trabalhou até aos 90 anos e com 80 ainda se deslocava às feiras de artesanato para vender os sapatos, que aprendeu a fazer num tempo em que na família chegaram a ser dezenas a confecionar.

“A minha mãe já se dedicava aos sapatos. Tenho fôrmas com mais de cem anos. Se eu tenho setenta e cinco! Aos 8 anos comecei nisto; deixei a escola. Só com quarenta e tal anos é que fiz a 4a classe. Trabalhávamos, trabalhávamos e depois íamos vender às feiras pelo Algarve todo. Em Olhão chegou a haver setenta mulheres a fazer e três sapateiros a pôr sola. Dantes as mulheres faziam tudo, depois passou-se a mandar ao sapateiro. É o que eu faço agora. Vai o sapato armado na fôrma e só depois de vir com a sola posta é que se descalça. A base cinzenta é de capotes dos soldados, as tiras vermelhas e doutras cores eram de baeta. Agora ponho feltro. As tirinhas brancas são de pelica, a vira é de carneiro. As tirinhas são cortadas com bitola, depois é tudo entrançado com os seus preceitos. Tem que se diga e eu gostava de transmitir. Gostava. (…) Os cloques são com sola de madeira e têm o contraforte solto para o pé poder dobrar. É por isso que fazem aquele barulho: cloque, cloque…Convidam-me para ir a exposições mostrar como se faz. O povo vem ver e gosta, mas isto não se aprende assim, só de olhar. Desde criança que tenho paixão por este trabalho. Gostava de ensinar. Tenho a noção de quando morrer se acabam os sapatos de ourelo.” Camponesa Ezequiela de Sousa Jerónimo.

Livro, Fazeres Tradicionais de Glória Marreiros, 1995.